Melancholia e a colisão do falso sorriso




Justine entra em cena de sorriso no rosto. Radiante, imaculada, perfeita na senda do padronizado. Mulher. Filha. Irmã. Funcionária. Recém-casada. O sorriso é alicerce aos papéis a desempenhar. É rótulo e certificado de felicidade aos olhos daqueles que a rodeiam. Assim lho exigem, qual animal de circo que tem de lhes reconhecer a presença. “My dear girl, you look…glowing today. Never seen you look so happy.”, afirma o pai a determinada altura. A sua felicidade é validada como expoente máximo por todos excepto pela própria. Carrega às costas o peso de idealizações terceiras, de rituais, tradições que lhe ditam um limiar a transpor no propósito de ser feliz. 
John: You’d better be goddamn happy.
Justine: Yes, I should be. I really should be.
É no esbater gradual do sorriso que temos a maior pincelada na caracterização da personagem, por directo contraste ao até então apresentado. Sinal de aviso, novo capítulo num historial clínico que a demarca inútil no seio de uma sociedade que se quer activa e produto de constante movimento e produtividade. No primeiro instante em que a vemos sem o sorriso estampado no rosto, de olhar vazio e indiferente à azáfama em redor, é imediatamente retirada de palco pela irmã. É nesta prontidão que se conta não só o passado, presente e futuro de Justine, numa confluência de tempos dormentes pela depressão – o slow-motion que demarca o prólogo em consonância com a condição da personagem -, mas também a postura de Claire face à doença. Em “Melancholia”, o carácter das personagens vê-se construído pelos actos, pela forma como deambulam pelo espaço, pela interacção com os demais ou ausência desta. As escapadelas de Justine delineiam a personagem em silêncio, num exímio puzzle da psique.

A direcção de fotografia de Manuel Alberto Claro trata o espaço da sua fuga como desprovido de esperança e finalidade. No curso da narrativa, cada irmã incorre em pontos de fuga, apenas para mais tarde regressarem ao ponto de partida, cerne de si mesmas. A imensidão do espaço físico, aberto nas possibilidades e no entanto prisão alegórica às personagens. Um casamento subtil com o surrealismo de Buñuel patente em El ángel exterminador, ainda que no filme de Lars von Trier os limites sejam engrandecidos e o regresso ao ponto de partida venha na ordem da aceitação da própria condição. A mise-en-scène diminui as personagens na importância, retirando-lhes qualquer perspectiva de controlo face ao que se aproxima. Pequenas em condição e escala.

Nos pólos da aceitação e rejeição do fatalismo constroem-se intimamente as personagens. Por contraste entre si mesmas bem como por reacção à iminência daquilo que as equipara. Por se tratarem de posturas tão opostas, há uma certa universalidade no vestir do espectador. Este aceita o inevitável ou estrebucha até ao impacto. A “dança da morte” de Melancholia é teste aos arquétipos do ser humano.

Justine é concebida à imagem da depressão do próprio von Trier, doença que se vê elo de ligação à trilogia temática iniciada com Antichrist e dada como concluída em Nymphomaniac. Estabelece-se um diálogo ausente de fala entre Justine e Melancholia, confidentes na inevitabilidade do encontro. Reacção dormente, característica de uma doença mental que prima por idealizar na ordem diária o pior dos cenários. A queda do sorriso postal por via da aceitação. Um dos mais honestos retratos da depressão, fazendo uso de um arrasto temporal como ocupação da personagem no espaço.

Sendo “Melancholia” um filme catástrofe tão íntimo na escala, cabe a Claire incorporar um medo que se conta universal. Um desespero crescente pontuado por uma respiração cada vez mais ofegante. O aro metálico concebido pelo filho é uma das maiores exteriorizações de ansiedade alguma vez traduzidas para a sétima arte. Um objecto medidor do inevitável e que dá a possibilidade de ponto de vista activo ao espectador.

Ausente de quaisquer laivos de esperança, “Melancholia” coloca a tragédia no horizonte como via ao estudo da condição humana em situação-limite. O fatalismo despe e desconstrói o indivíduo.

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