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"Happy End" ou como reciclar toda a obra de Haneke

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  Happy End é filme-resumo da carreira de Michael Haneke. Ecoa Der siebente Kontinent na sobriedade do suicídio. Usa ainda do seu filme de estreia o dinheiro como temática corrosiva. Traz muito de Benny's Video para a adolescente que observa o mundo através do olho da câmara, numa ânsia do registo que a ambos tolda a vista e os torna mais frios ao valor de uma vida. Ainda que em Happy End não se passe das palavras ao acto, proporciona-se também aqui tempo de antena aos fetiches pouco convencionais que foram pauta a La Pianiste . A vigilância de Caché , exacerbada no pós-11 de Setembro, novamente a (des)construir a linha entre público e privado. Presente ainda Amour e o corpo envelhecido como carcaça que sufoca e limita. Happy End volta a embrenhar-se no confronto da classe média, não houvesse uma recorrente tentativa do austríaco em empreender um estudo sociológico no curso da sua filmografia. Torna-se mais evidente na recta final do filme, num contraste entre clas...

The Great Buddha+, o umbigo e o capachinho

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The Great Buddha+ deixa transparecer uma introspecção bastante sóbria, característica de quem chafurda nas ínfimas possibilidades do metacinema. O taiwanês Huang Hsin-yao - na primeira incursão pelo campo da longa-metragem de ficção, num alongar da sua curta homónima - avisa o espectador de antemão quanto à possibilidade de se vir a intrometer no curso da narrativa, em jeito de comentário áudio indissociável ao filme. Ocasional interacção entre produto fílmico e espectador, num piscar de olhos e reconhecer da presença - "O filme é a preto-e-branco, ninguém vai reparar na cor da mota", aponta a dada altura uma das personagens. Sendo que o voyeurismo lhe é tema maior, essa sua opção de se embrenhar no metacinema só eleva a postura do próprio espectador a um outro patamar de crítica. Seres errantes - até mesmo o cenário se encontra em consonância com esse ocupar fluido de tempo e espaço - que procuram uma forma não só de passar o...

Dívidas aos ombros

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Na era do olhar como veículo, substituto à ausência de voz audível, contava-se tudo mediante o seu enaltecer. A composição do plano dispõe os credores e a devedora na discrepância do fosso de poder que os demarca entre si. As dívidas nas mãos dos quatro homens em segundo plano. Observam-na de cima, reduzindo-a na importância. O olhar da mulher num crescendo de terror. As mãos em destaque, ainda que não lhes caibam o protagonismo da história. A postura conta a sua condição actual. The Hands of Orlac tem aqui um dos seus mais memoráveis quadros.

Utopia imprecisa

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Em plena tentativa de fuga há um belíssimo momento que permite a The Circle recuperar o fôlego. Duas mulheres junto a uma pintura que ilustra a terra natal daquela que lhe aponta o dedo. O pintor não foi preciso. O destino ali representado como distante da memória que o conservara. Ponto de fuga que tanto promessa comporta. Janela aberta à personagem, à mulher como sexo inconformado.

A arte de comer esparguete

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Quem diria que comer esparguete poderia conter o seu quê de perturbador? Ninguém ousa aliar o terror com o girar do garfo, mas The Killing of a Sacred Deer lá o faz. Tensão quase palpável, pelas garfadas de um Barry Keoghan a ter debaixo de olho. Ao falar em esparguete (raras as ocasiões), não há como não resgatar da memória a mítica refeição - nojenta, diga-se - que eleva Gummo no reconhecimento. O esparguete, o leite, o champô e o chocolate. Mescla impensável que é marca de água (suja) de Harmony Korine . Cena que não mais nos abandona. Ou porque não o prato de esparguete de A Clockwork Orange , célebre momento cujo desfecho tão bem se conhece? É favor acompanhar com vinho. A comida, qual sub-género de terror, continua a saber demarcar-se. Não esquecer que foi igualmente em 2017 que o espectador se viu presenteado com a belíssima cena da tarte - sim, essa mesmo, na duração de trilogia - que catapulta A Ghost Story . Seja com esparguete ou tartes fúnebres, o incontestável p...

A mulher iraniana, do choro ao silêncio

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Tão simples no seu pressuposto e ainda assim uma das mais belas aberturas da história do cinema? Do negro que faz desfilar os créditos iniciais de The Circle , sonorizados pela associação a um parto, ao primeiro plano que deixa entrever a luz. Cessam os créditos, entra o choro, o branco em jeito de chegada ao mundo. Simples. Eficaz. Mera sequência de planos de contraste, de um antes e depois, capaz de contar o lugar da mulher na sociedade iraniana que tão bem a demarca e menoriza. "É uma rapariga", boa nova recebida com desagrado e medo por uma mulher. Vemo-la de costas, véu negro que a adorna, naquele momento despojada de individualidade e amostra do sexo julgado como menor. Inconformada, a mãe da mais recente mãe volta a questionar o sexo, numa réstia de esperança por um possível engano. "É uma linda rapariga", assim lho asseguram novamente. Desespero crescente, capaz de antever a reacção do pai ao saber o sexo da criança. Naquele instante nasce a mulher como ...

Resolução de ânus novo

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Há que entrar em Pieles - não entrem! - de régua na mão para se apreciar toda a mestria masturbatória do plano. Está no centro do enquadramento? Sim, está no centro. Vejam quão direitinho o prato de sopa na mesa filmada de cima para baixo. Mas estão a ver? Se calhar ainda não repararam bem. Vou inserir mais um plano perfeitinho só para ter a certeza de que viram como sei posicionar motivos em cena. Deixem-me contar-vos um segredo: gosto imenso dos filmes do Kubrick e do Wes Anderson. Aposto que não faziam ideia. Assim é Pieles , postal ao quão plástica se consegue exibir a feitura de um filme. O uso da cor não é menos que um dos piores com que já violei estes meus olhos. Há o cenário rosa. Há o cenário roxo. E depois há ainda o rosa, sem nunca esquecer o roxo. Até mesmo a cor dos pêlos púbicos casam com a mise-en-scène . Nada é deixado ao acaso, tamanha a visão artística que aqui nasce, tropeça e morre. Durante 77 minutos não há descanso algum, mínima brecha à "normali...

Ele até fez uns hambúrgueres...

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Diz ele que até cozinhou uns hambúrgueres um dia quando a mulher estava doente. E ela mesmo assim não o aceita, imagine-se. Alguém a relembre que aquele que ali se desculpa - um dos maiores narcisistas da história do cinema - provavelmente teve de os descongelar primeiro. Não é de ânimo leve. Por vezes nem dá para retirar o plástico na totalidade, tal é que ficam aqueles bocadinhos entranhados na carne. Mas pronto Laura Linney , como até tens umas nomeações aos Óscares podes dar-te ao luxo de ser esquisita. The Squid and the Whale é uma das melhores amostras de um casamento que finda e consigo arrasta as crias na malfadada influência. Há inclusive tempo e espaço para a pergunta: e o gato, com quem fica? O argumento de Noah Baumbach é imbuído de um à-vontade nas motivações e vias a seguir. A causa para a ruptura fica ao nosso critério, em consonância com as peculiaridades do marido que gradualmente corroem a cara-metade. Por cada nova observação soberana do homem, mecanismo de...

O ócio que nos move

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O sonho americano, da promessa ao resvalar moral. Seres à margem, alvos do mesmo julgamento que colocara as personagens de Tangerine na beira do prato. The Florida Project abandona um pouco a aura caseira do filme anterior de Sean Baker , popularmente conhecido por ter sido filmado com iPhone 5S, mas mantém uns certos laivos de documental que se acerca das "minorias". Visualmente mantém a palete caleidoscópica, não deixando nunca de parecer inato ao mundo em que se insere. Ambos se apresentam conscientes da contemporaneidade - as selfies no momento da desgraça, na ânsia do registo - sem incorrer no erro do expositivo da grande maioria dos filmes que desesperam em mostrar-se actuais e compreensivos da era virtual. A força motriz de The Florida Project são as crianças, opção criativa que aqui funciona muitíssimo bem mas que tantas outras vezes se vê tiro ao lado pela escolha do elenco. São estas que pegam no espectador pela mão e o levam a explorar o espaço. A imaginaç...

Espera à porta que a mãe logo vem buscar-te

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Mom and Dad chega como lufada de ar fresco, semeando a vontade para que se revisite uma e outra vez em busca da mesma diversão tresloucada e descomprometida. Afirmação bastante precoce, sem que o tempo lhe dite peso e medida, mas a verdade é que parece piscar o olho à possibilidade de culto. Histeria em massa que faz com que os pais se virem violentamente contra os filhos. Do mesmo ano e equivalente no flutuante espectro de emoções só me vem à memória um Lowlife com sangue Tarantino . Ambos lá ficam na certeza de terem arrancado saltos no assento, nunca por medo mas por êxtase. Mom and Dad faz esboçar o sorriso na cena da escola (!), tal é o delírio que ali se concebe. A partir daí não mais esmorece. Casa a um Nicolas Cage em todo o seu esplendor ( "Open this motherfucking door") e uma Selma Blair que consegue surpreender na subtileza de emoções. A banda-sonora é uma fusão de estilos que pontuam aqui e ali o intercalar do terror e da comédia com uma fluidez de lou...