Plano-sequência: Code Inconnu (2000)

Após um prólogo cujos códigos se apresentam como inacessíveis para uma mão cheia de indivíduos, o filme do austríaco Michael Haneke catapulta-se a si próprio com um brilhante plano-sequência. Aliás, dá-se no filme em questão uma hegemonia dos planos-sequência, notando-se um claro menosprezar da montagem como meio de produzir um significado maior. As questões que Haneke pretende abordar respiram na íntegra através da sua realização. 
O plano-sequência a abordar introduz as várias problemáticas que recebem a atenção do ponto de vista do realizador. Dez minutos que se fazem passar com o auxílio de um travelling lateral, que acompanha o percurso de determinadas personagens numa avenida parisiense. Inicia-se com o deslocamento de uma personagem que se introduz no mundo do enquadramento pela margem esquerda. A câmara já se encontra à sua espera e imediatamente se iguala no trajecto, caminhando para a direita do enquadramento progressivo. Uma segunda personagem, desta feita masculina, junta-se ao percurso que a mulher compartilha com o olhar da câmara. Quando o sente como necessário, a câmara abranda a sua velocidade, parando mesmo em determinadas alturas, não descurando os movimentos dos dois indivíduos. Após seis minutos no decorrer do filme, a mulher abandona o enquadramento, deixando o testemunho com a personagem que lhe adveio. Passamos a persegui-lo num trajecto da direita para a esquerda, com o intuito de regressar ao ponto de partida, o mesmo que viu câmara e personagens efectuarem o primeiro passo. O espectador não o observa a atingir a meta.
A percepção dos sons que o rodeiam intensifica-se assim que inverte o sentido, não tendo agora a comunicação com a primeira personagem como meio de distracção. Está agora mais atento às trivialidades do dia-a-dia e por conseguinte também nós ganhamos uma nova percepção. As buzinadelas fazem-se sentir cada vez mais e os instrumentos dos artistas de rua captam agora o seu interesse. Não é apenas o som que se toma mais protagonismo mas sim a imagem contida no quadro em movimento. Agora que temos apenas uma personagem, que se encontra em silêncio, podemos observar o consumismo, com as entradas e saídas nas lojas que se deixam ficar para trás. A certa altura, dá-se o acontecimento que causa a colisão de várias personagens, até então simples pessoas que se tornam relevantes pela sua relação com algo. O rapaz que acompanhamos arremessa um papel na direcção de uma pedinte. Esse simples acto de carácter humilhante marca o tom do filme e trabalha na direcção dos acontecimentos das mais variadas personagens. Um acontecimento público que ganha proporções privadas. 
Rapidamente ganha destaque uma terceira personagem que tenta forçar um pedido de desculpas perante tal acto que acabou de testemunhar. A mulher com a qual iniciámos o percurso do plano-sequência regressa ao enquadramento tentando defender o rapaz que lhe é próximo. A polícia é metida ao barulho e a pedinte é naturalmente implicada na confusão. Em poucos minutos dá-se o choque de diversas culturas e classes sociais. Os nossos olhos preenchem-se com brutalidade policial, resistência e preconceito. A aparente civilização e a ilusão do ser dominante e do ser submisso. 
A câmara oscila da esquerda para a direita e vice-versa, de forma a enquadrar as acções preconizadas como relevantes, deixando assim para segundo plano de importância as personagens de destaque. 
Michael Haneke não só nos apresenta elementos de cada uma das famílias a serem trabalhadas no filme como nos introduz a comunicação como tema de ensaio nesta sua obra. Ao longo do trajecto das nossas personagens, observamos as várias relações entre as pessoas que efectuam o mesmo trajecto ou o seu inverso. Aperto de mãos, sorrisos cordiais, troca de palavras e impressões rápidas. Frases que se perdem na amálgama de sons em redor. No fundo, trajectos individuais que se cruzam e que partilham momentaneamente o mesmo tempo e espaço. 
Outro aspecto de relativo interesse é a aparente dicotomia entre a esquerda e a direita, apoiadas respectivamente pela realidade e pela fuga. A primeira personagem efectua um percurso da esquerda para a direita, com o intuito de chegar a uma reunião de trabalho. De referir que trabalha como actriz, sendo essa a sua fuga à realidade. Também a pedinte tenta escapar a toda a confusão para a qual está prestes a ser implicada, fugindo da esquerda para a direita. Até que o polícia a agarra à força, levando-a de encontro ao tumulto. 
Pegando no anteriormente referido, quando o percurso do rapaz e da câmara se inverte, levando-o ao ponto de origem, torna-se mais claro tudo o que o rodeia, passando este a oferecer atenção às trivialidades que o rodeiam. 
Um plano-sequência que demonstra a mestria de Haneke a dirigir actores e que proporciona espaço para as personagens respirarem, chocarem e colocarem em causa questões importantes. No tempo real de dez minutos. 

Próximo plano-sequência a ser abordado pertence a Weekend (1967) de Jean-Luc Godard.

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