Crítica: Holocausto Canibal (1980)
Título Original: Cannibal Holocaust
Realização: Ruggero Deodato
Argumento: Gianfranco Clerici
Elenco: Robert Kerman; Gabriel Yorke; Francesca Ciardi; Perry Pirkanen
[Spoilers] Cerca de cinco anos depois da estreia de Salò, or the 120 Days of Sodom (1975), o terreno italiano volta a distribuir mais um filme-choque, que viria a ganhar um lugar de relevo na história da sétima arte. Várias décadas depois com uma censura muito menos restrita, ambos ainda se encontram banidos em inúmeros países por todo o mundo. Mas não é a mestria do filme de Pier Paolo Pasolini que pretendo aqui destacar.
Polémico. Chocante. Controverso. Visceral. Perverso. Crítico. Perturbador. Não é difícil atribuir tais adjectivos ao filme canibalista de Deodato. A tarefa realmente difícil passa por eleger o momento que cria maior incómodo para o espectador. Um leque de escolhas bastante alargado: uma mulher violada e arrastada pela lama como se de um suíno se tratasse; outra "simplesmente" empalada; a castração de uma das personagens principais com uma simples faca; corações, fígados e outros órgãos de origem humana ainda ensaguentados a servirem de refeição aos seus semelhantes; um recém-nascido a ser enterrado no terreno lamacento segundos após o seu nascimento; uma tartaruga gigante a ser resgatada do seu habitat com o intuito de ser desmembrada num acto completamente horrendo.
O argumento de Gianfranco Clerici apresenta uma estrutura bastante interessante, apoiada por uma montagem exímia por parte de Vincenzo Tomassi. O uso de found-footage a intensificar o seu teor pseudo-documental serviu de catapulta para muitos filmes actuais nos meandros do género de terror.
O realizador italiano decidiu captar no seu filme a morte genuína de seis animais, decisão alvo de muita controvérsia. A título pessoal, a morte da tartaruga anteriormente referida foi um momento absolutamente horrendo. Uma decisão que teve como intuito intensificar a ideia de veracidade da acção do filme. Acarretou grandes consequências, entre as quais várias discussões no set levadas a cabo pelos actores com o próprio realizador. A meu ver, podia ser muito mais se não quebrasse esta barreira ética que tanto me afasta do apreciamento deste filme. Um massacre totalmente desnecessário dentro do enquadramento. Não creio que perdesse o seu teor documental se as mortes fossem encenadas e tidas fora de campo.
Não só nesse aspecto foram transpostos limites, mas também na forma como exploraram o corpo humano. A morte como espectáculo sensorial mostrada com todo o detalhe que lhe é inerente. Mortes que roçam o verídico e que acabaram a ser analisadas em pleno tribunal. Isto derivado do aprisionamento de Deodato, após a estreia do seu filme. Após o entenderem como encenações bastante elaboradas, não permanece muito mais tempo atrás das grades. Nem todos receberam o seu objecto cinematográfico com repulsa. Passo a transcrever as palavras de Sergio Leone, na carta enviada ao realizador:
"Dear Ruggero, what a movie! The second part is a masterpiece of cinematographic realism, but everything seems so real that I think you will get in trouble with all the world."
E tinha toda a razão. Não só pela violência que roça o real, mas também pelo comentário crítico que elevou o filme ao estatuto de "polémico". É visível no decorrer do filme a distinção que faz entre os canibais e a sociedade moderna, o tal poço de cultura rodeado de enormes avanços tecnológicos. E esse é claramente o seu maior trunfo, nesse comentário social que deita por terra toda a hipocrisia da sociedade actual. Quem são os verdadeiros selvagens? De um lado, temos os canibais que aparentam seguir o seu próprio instinto de sobrevivência, ao defender o seu território sem olhar a meios. Do outro lado, temos os indivíduos modernos cultivados com a razão, que cometem actos semelhantes ou piores por puro divertimento.
Há um momento bastante interessante no found-footage, no qual observamos a equipa de exploradores a contemplar a mulher empalada. O operador de câmara avisa o seu colega para este ter em atenção que se encontra momentaneamente a gravar. O seu colega anteriormente nada afectado pelo espectáculo à sua frente, muda as suas expressões faciais de forma a atingir aquela que se aceita como uma reacção normal na sociedade moderna. Um claro fingimento que ilustra na perfeição a hipocrisia daqueles indivíduos que são o espelho da população. E aqui é igualmente interessante o comentário crítico, ainda que pouco explícito, que direcciona aos media e à encenação e selecção da fatia do real de forma a causar sensação.
Por último, temos os outros indivíduos do mundo moderno. Com a diferença de se encontrarem no seu habitat natural, rodeados pelos arranha-céus de Nova Iorque. A uma distância segura da Amazónia e de todo o terror lá vivido, sentam-se confortavelmente numa sala de projecção a julgar os brutos filmados do grupo de exploradores. Tentam lavar as mãos de todo aquele massacre e acabam por tomar a decisão de queimar a película, impossibilitando assim ser visualizado pelo público em geral. Um público fictício salvaguardado das barreiras éticas que ali se quebram.
A nossa visão, a do real espectador, abarca um maior número de acontecimentos. O nosso campo de visão abrange o terror da selva e a hipocrisia inerente às reacções na sala de projecção. Deodato usa-nos como voyeurs que criticam a decadência moral da sociedade. No entanto, não interrompemos a visualização.
Talvez também eu seja hipócrita por não desviar o olhar em nenhuma sequência e por dar demasiada importância ao desnecessário massacre dos animais. Mas para mim, é um grande factor que não deve ser ultrapassado. E é unicamente esse ponto da questão que me impossibilita de atribuir uma classificação positiva ao filme.
Classificação: 4/10
Grande clássico Rafael, mas (e chamem-me sádico) não "negativizo" o filme propriamente pela questão dos animais, embora essas cenas sejam chocantes e não muito necessárias... Mas olha que merece uma reflexão essa paranóia que surgiu nos anos 80 de filmes sobre canibais...
ResponderEliminarPercebo-te completamente. Mas por mais que tente ver para além do massacre animal, não consigo deixar de penalizar esta obra por esse mesmo factor. Dei por mim com vários sentimentos mistos aquando da visualização. E ainda nem estou em paz com a classificação que atribuí, pois se não fosse esse grande factor teria atribuido uma nota claramente positiva, pois gostei bastante da crítica que o realizador tentou transmitir.
EliminarTens razão, ontem é que me apercebi disso ao pesquisar um pouco sobre o assunto, não tinha mesmo noção sobre esse "boom" do panorama canibal. E este realizador inclusive tem mais um filme de canibais (ou mais, isso já não sei precisar...).
Abraço
Ainda não me aventurei a ver este, este tipo de cinema faz parte da História e tem o seu interesse em conhecer nem que seja um interesse puramente académico, mas não são filmes "pêra doce".´Um dia tenho de experimentar isto, apesar de à partida prever que esteja longe dos meus favoritos :P
EliminarVi foi o Saló, filme perturbador tb, mas com boas ideias, o final nomeadamente. Mas lá está, não é filme fácil de digerir, nem me apetece revê-lo. Contudo há que salientar o trabalho do realizador. Há muitos filmes mais recentes que têm mais meios em termos de efeitos e não conseguem metade do impacto deste em termos de choque.
Se o vires, depois quero ler a tua opinião eheh Mas tens toda a razão, não é pêra doce.
EliminarTambém ainda só visualizei o Saló uma vez e estou a tentar ganhar "coragem" para o rever. Bastou-me essa única vez para se embrenhar na minha mente de tal forma que até hoje ainda me recordo de todas as sequências. É uma grande obra sem dúvida. Adoro a crítica que o Pasolini passou (Aliás, como no "Cannibal Holocaust").
Abraço
Concordo com o Carlos Branco, não me meto nessa luta. Realmente, o filme tem um poder enorme e admiro muito o realismo e mesmo a estrutura do filme, que é um factor subestimado.
ResponderEliminarTambém admiro o filme visto por muitos prismas. E a estrutura é de facto algo que merece destaque.
EliminarAbraço