Ordet e o Teatro Filmado


Béla Balázs levanta questões quanto à distanciação entre cinema e teatro filmado. A que meios recorre a linguagem cinematográfica para adaptar ao grande ecrã algo que à partida tinha todas as características para funcionar num palco de teatro?
“Quando e como a cinematografia se tornou uma arte específica independente usando métodos muito diferentes do teatro e usando uma forma linguística totalmente diferente? Qual a diferença entre teatro filmado e arte cinematográfica? Sendo ambos igualmente filmes projectados numa tela, porque digo que um é apenas reprodução técnica e o outro uma arte criativa independente?” (Theory of the film, p.30)
Para explorar um pouco a temática, irei debruçar-me sobre Ordet, um filme dinamarquês de 1955 realizado por Carl Theodor Dreyer. Galardoada com o Golden Lion no Festival de Veneza, a película baseia-se na peça homónima de Kaj Munk encenada pela primeira vez em 1932. Relata a história de Morten Borgen, o dono de uma quinta, que carrega nos ombros os ideais e as atitudes de cada um dos seus três filhos. Mikkel, o mais velho dos filhos, renuncia a fé e a crença em Deus. Johannes, pelo contrário, endoidece e afirma com toda a convicção ser Jesus de Nazaré. Anders, o filho mais novo, acaba por pedir a mão da rapariga que ama em casamento, mesmo depois do pai o advertir para não o fazer. Para complicar ainda mais, Inger, mulher de Mikkel, morre durante o parto, o que acaba por trazer à superfície as dúvidas de cada um perante Deus.
Analisemos agora características próprias da temática aqui explorada. Na abertura do filme, bem como mais à frente, nota-se um fade do exterior para o interior da casa. Para Béla Balázs, fades e fusões são técnicas de montagem que nos indicam que as imagens que observamos são de facto construções humanas que põem em causa a realidade. Funcionam como o nosso próprio processo mental, ao abrir e fechar determinadas sequências fílmicas. Pode-se especular que quase funcionam como o “descer do pano” numa peça teatral.
As panorâmicas presentes no filme dão-se com uma velocidade adequada. A câmara move-se como se procurasse percorrer o cenário numa peça de teatro. Como os olhares de um público que percorrem todos os passos dos actores, não descurando qualquer acção ou lugar por onde estes se possam escapar.
Salvo raríssimas excepções, não existem falas fora de campo, o espectador tem sempre bem presente a associação da imagem à voz. A personagem dialoga apenas quando a câmara a tem no enquadramento, como se não a ouvissem de outra forma que não essa. As falas originam-se sem atropelos, numa alternância tão coordenada que se assemelha a uma coreografia.
Uma das cenas mais ilustrativas de tais características desenvolve-se quando Anders confessa a Mikkel e Inger que se encontra apaixonado por Anne, filha de um dono de outra quinta, e que pretende pedir a sua mão em casamento. A cena inicia-se com Anders junto a Inger.

ANDERS

Vais ter de me dar uma ajuda...

INGER

Com o quê?
ANDERS

Bem, eu e a Anne temos estado a pensar...

INGER

Anders! Não te apaixonaste pela filha do alfaiate, pois não?

ANDERS

Sim! Há algo de errado nisso? Mikkel?


Quando profere o nome de Mikkel, já se encontra junto a este. Inger já não se encontra incluída no enquadramento.


MIKKEL

Podias ter escolhido muito pior.

ANDERS

Pior?

MIKKEL

Sim. Não quero dizer que há algo contra ela, é uma rapariga muito querida.

ANDERS

Então?

MIKKEL

Que iria o pai pensar?

ANDERS

É por isso que preciso da vossa ajuda.


Quando acaba a frase já se encontra novamente próximo de Inger, deixando Mikkel fora do enquadramento.


INGER

Sim, mas e quanto ao pai dela. Que vai ele dizer acerca disso? Bem sabes que eles têm ideias diferentes sobre a religião.

ANDERS

Amamo-nos um ao outro, não faz qualquer diferença.

INGER

Sim, também pensamos isso, o Mikkel e eu, mas...
ANDERS

Mas? Mas o quê? Mikkel?


O enquadramento volta a incluir apenas Mikkel e Anders, após este último se chegar novamente mais perto dele.


MIKKEL

Se eu o soubesse...

ANDERS

Ouçam, vão-me ajudar ou não?

MIKKEL

Claro que ajudamos. Porque não vais até lá e tens uma palavra com o pai da Anne?

ANDERS

Não me parece que adiante conversar com ele...

MIKKEL

Tenta de qualquer das maneiras.

ANDERS

Sim, suponho que posso tentar. Que achas, Inger?


A câmara acompanha Anders quando este se aproxima da cunhada. Tal como numa peça de teatro em que o público disponibiliza toda a sua atenção nas personagens que levam a cabo o diálogo.


INGER

Sim, tenta. Entretanto, vou tentar conversar com o teu pai. Vai ser a parte mais complicada.

ANDERS

Achas?

INGER

Sem dúvida. Mas eu arranjo uma maneira.


Mikkel entra no enquadramento, colocando-se entre os dois.


ANDERS

Muito Obrigado, Inger. Tenho a certeza que vais conseguir.

MIKKEL

O teu trabalho é entenderes-te com o alfaiate.

ANDERS

Até logo. Vou lá agora mesmo.

MIKKEL

Adeus

INGER

Boa sorte!

Mesmo antes das despedidas serem dadas, Anders já abandonara a sala, já não se encontrava em campo.
Como observamos na pequena cena dada como exemplo, não existem falas fora de campo. As personagens movem-se pelo cenário, de forma a obterem o diálogo da melhor forma, mantendo o espectador focado no que de mais importante está a acontecer.
Em várias situações, como quando estão à mesa de jantar, as personagens dispõem-se de forma a integrarem o enquadramento apenas quando necessário, quando são um membro activo no diálogo a decorrer. Seja ao levantar-se para agarrar numa tigela na outra ponta da mesa, seja a servir o café, nenhuma personagem é descurada do plano, se a sua acção ou a sua fala é considerada importante para o espectador.
Muitas vezes, imediatamente antes de uma personagem entrar no compartimento onde decorre determinada cena, outra personagem a anuncia em conversa, quase como se a estivesse a chamar. A câmara foca-se na porta que se abre para deixar entrar determinada personagem. As saídas e entradas são sempre coordenadas.
Para a transição entre locais, nomeadamente as duas quintas principais, é sempre mostrado um pouco do caminho a fazer entre ambas. Muitas outras acções servem como transição entre dois compartimentos, como o simples acto de uma empregada a servir o café.
A informação dada muitas vezes torna-se desnecessária, empregando apenas um facilitismo para a compreensão do espectador. Apesar disso, nota-se neste filme que também se reduz a inclusão de planos desnecessários. Por exemplo, se observamos uma acção e apreendemos o seu som característico, quando essa acção volta a ter de ser repetida, já não é necessária a sua inclusão no enquadramento, pois associamos o som fora de campo a uma acção anteriormente mostrada. Em todo o filme, o som torna-se também importante para dar a entender o que se passa nos outros compartimentos a que não temos acesso em determinado momento.
É também importante referir a iluminação usada com mestria nesta obra de Dreyer. Quando se quer destacar determinada personagem, principal ou secundária, uma iluminação mais forte é usada sobre ela, de forma a torná-la mais visivel em contraste com os restantes. De forma a manter foco sobre essa determinada personagem, as restantes mantêm-se quietas para não roubar a atenção do espectador. Normalmente para além da iluminação, aplica-se também uma ordem de planos, em que a personagem importante a destacar se encontra em primeiro plano.
Tal como numa peça de teatro, quando se quer dar especialmente destaque a uma personagem, esta distancia-se das restantes, de forma a roubar a atenção do público. O andar por norma lento, intensifica ainda mais esse transe. Este destaque normalmente acontece porque a sua acção e/ou linha de diálogo é importante a reter. Em Ordet, acontece inúmeras vezes com Johannes e os seus monólogos.
Numa estrondosa cena final, Inger ressuscita e Mikkel ganha a fé que não possuía. Os créditos assumem-se como um pano que desce para encerrar o acto final.
“Aplausos durante a projecção do filme de x. Irresistível a impressão «teatro».” (Notas sobre o cinematógrafo, Robert Bresson)
Ordet é considerado como um dos melhores exemplos de teatro filmado e também uma óptima ilustração das noções de Balázs.
Todas as mudanças das personagens no enquadramento se afirmam como os vários pontos de vista do espectador, como se fosse uma colecção de perspectivas de uma audiência distribuída por diferentes lugares frente a um palco. Concluindo, o teatro filmado resume-se por sendo uma forma de fechar o enquadramento, de restringir o cenário ao que realmente interessa, sendo que no teatro em palco é quase impossível ocultar tudo o que não importa do campo de visão.
“Opor ao relevo do teatro a superfície lisa do cinematógrafo.” (Notas sobre o cinematógrafo, Robert Bresson)

Comentários

  1. É impressionante observarmos a influência de Dreyer sobre um outro cineasta dinamarquês: o contemporâneo Lars Von Trier. A obsessão de Trier pelo "sacrifício feminino" como exemplos em: "Breaking the Waves" (interpretação devastadora da britânica Emily Watson como a protagonista Bess McNeill) - primeiro filme da trilogia "a garota do coração de ouro"; "Dancer in the Dark" - segundo filme da trilogia "a garota do coração de ouro"; "Dogville" e "Antichrist". Na verdade, muito do manifesto "Dogma 95", que Lars assinou junto com Thomas Vinterberg, tem sua inspiração em Carl Theodor. Lendo o texto de Rafael veio em nossa mente os poucos trabalhos de Dreyer que pude assisti e toda sua influência no moderno cinema mundial que vem, justamente, da Dinamarca.

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    1. É verdade, cada vez aprecio mais o cinema dinamarquês. Lars von Trier! Essa polémica "persona non grata". Tão amado por uns e tão odiado por outros. Eu cá considero-o um dos melhores realizadores da actualidade. Digo isto tendo já visto toda a sua filmografia (aguardo ansiosamente o "Nymphomaniac", que prevejo que irá causar também ele polémica). É inegável que, para o bem ou para o mal, cada obra sua é uma experiência única que apela a todos os nossos sentidos. A sua necessidade de chocar tudo e todos, indo contra todas as convenções e mais alguma, é algo que me chama realmente. É um daqueles realizadores com que gostaria de ter uma conversa descontraída. Enfim, tal como dizes notam-se claras influências do Dreyer no seu cinema. Tal como de Tarkovsky, sendo este um dos grandes motivos pelo qual tanto gosto do von Trier. Quanto a este senhor de nome Carl Theodor Dreyer, ando a descobri-lo calmamente...

      Abraço

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