O close-up como catalisador de emoções


Pela óptica do teórico Béla Balázs, o close-up permite distanciar o cinema do teatro. Consiste, tal como o próprio nome indica, em fechar o enquadramento até se restringir somente àquilo que quer destacar, seja um rosto humano ou um objecto inanimado. Ao “cortar” o corpo da personagem, de forma a reduzir o campo de visão para o rosto, é possível criar uma distanciação entre espectador e personagem.
“A expressão facial é a mais subjectiva manifestação  do homem, mais subjectiva ainda do que a fala, porque o vocabulário e a gramática estão sujeitos a convenções e regras mais ou menos válidas universalmente. Enquanto a representação dos traços do rosto [...] não é governada por regras objectivas, ainda que seja em larga medida uma questão de imitação. O close-up torna objectiva essa que é a mais subjectiva e individual das manifestações humanas” (Theory of the film)
La Passion de Jeanne d'Arc (1928), uma das maiores preciosidades da era do cinema mudo, é um dos filmes que melhor ilustram o uso desta técnica cinematográfica. Realizado por Carl Theodor Dreyer, relata o período em que Joana d’Arc se viu nas mãos dos ingleses, mostrando o seu julgamento, aprisionamento, tortura e execução. A representação de Renée Jeanne Falconetti é considerada uma das melhores entregas em mais de cem anos de cinema. Uma questão se impõe: se o plano fechado não tivesse sido uma opção, a sua interpretação seria igualmente reconhecida? Ou será que, perdida numa amálgama de planos gerais, cairia no esquecimento?

De qualquer das formas, seria impossível imaginar tal obra-prima sem a devida aproximação. Sem a devida clausura que intensifica a intimidade entre personagem e espectador. Os dedos acusadores. Os olhares inquisidores. Todas as expressões corporais dos juízes levadas a cabo num plano fechado. O movimento furioso dos lábios acusam a protagonista, mesmo sem a apreensão das palavras pelo espectador. O plano fecha-se para acentuar o rosto dos juízes, carregados de frieza no olhar e sem uma réstia de compaixão. Os olhares, na grande maioria direccionados a uma Joana que se encontra num patamar inferior, reduzem-na precisamente a esse lugar que lhe pertence. A protagonista vê-se rodeada por acusações, qual presa incapaz de se desprender. O sufoco em crescendo espelha-se em cada expressão sua, cena após cena. As lágrimas correm pelo rosto da actriz num processo que lhe parece tão inato e sem espelhar qualquer dificuldade. Num enquadramento tão apertado, é difícil haver espaço para o deus pelo qual esta tanto aguarda. 

A personagem sufoca o plano fechado com olhares que tudo dizem, com palavras que não se ouvem mas que se impõem como verdadeiras. O desespero espelhado no rosto, como que desprovida do resto de um corpo por onde distribuir a dor. A luta para manter a sua fé apesar de tudo. A execução. E aqui é quase certo o espectador sofrer com ela. Close-up do rosto de Joana d’Arc. Close-up de Cristo na cruz. As labaredas tudo consomem.

Durante todo o filme o close-up proporciona a possibilidade do espectador entrar intimamente na história, como se de um voyeur se tratasse. Faz com que um rosto adquira uma expressividade que antes não possuía. Proporciona maior detalhe, mais informação e maior carga dramática.

Um exemplo mais recente do uso deste plano pode ser visto em Shirin (Abbas Kiarostami, 2008). Sendo as reacções de todas aquelas personagens resultado do filme a que assistem, era absolutamente imprescindível uma maior aproximação ao rosto das mesmas. Os enquadramentos acabam por funcionar na perfeição. O espectador vê-se envolvido naquele mar de reacções, limitando-se a observar o filme pelo olhar de terceiros. São as expressões faciais da audiência que contam o invisível. Quando usado com um propósito em mente, o close-up pode revelar-se uma técnica bastante eficaz no despertar de emoções. Janela aberta à alma.

Comentários

  1. Adorei o texto, sendo que adoro um dos filmes aqui falados - La Passion de Jeanne d'Arc (um dos meus filmes preferidos).

    Cumprimentos,
    Jorge Teixeira
    Caminho Largo

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    1. Obrigado Jorge. Fico contente que te tenha suscitado interesse. É de facto um grande filme de um grande nome da sétima arte.

      Cumprimentos,
      Rafael Santos
      Memento mori

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  2. «De qualquer das formas, seria impossível imaginar tal obra-prima sem a devida aproximação. Sem a devida clausura que intensifica a intimidade entre personagem e espectador.» Na mouche. Eu diria ainda mais: «A Paixão de Joana D'Arc» não seria o mesmo filme sem o recurso ao close-up, pois essa aproximação e claustrofobia não se sente apenas na presença da personagem principal (fabulosa interpretação, sem dúvida), mas em todo o filme, seja nos membros do 'tribunal', seja nos restantes elementos, como é o caso do exemplo da cruz, que bem referes.
    Parabéns pelo texto.

    Cumprimentos,

    PMF

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    1. Obrigado PMF. É realmente difícil imaginar este portentoso filme sem esse recurso. Sem essa claustrofobia, como referes.
      Estou a ler de momento "O Processo" do Kafka e é engraçado que por vezes me vem este filme à memória. Se pusermos de parte a (grande) quantidade de elementos bizarros, a história até tem certas semelhanças. Na forma como a Joana D'Arc se assume como uma "formiga" perante aquele tribunal.

      Cumprimentos,
      Rafael Santos
      Memento mori

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    2. Já li «O Processo» há alguns anos, mas faz todo o sentido essa comparação. Curiosamente são objectos de certa forma contemporâneos e não sei até que ponto a obra de Kafka terá influenciado (ou não) este filme de Dreyer. O certo é que encaixam na perfeição na época em que foram lançados.

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    3. Pois também não faço ideia. O filme do Dreyer parte de relatos concretos da vida da Joana D'Arc mas três anos antes do lançamento do filme, "O Processo" é publicado. Talvez se tenha inspirado de alguma forma para a composição dos cenários ou afins.

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