Better on tv than on the streets

O título desta divagação ilustra a mais importante linha de diálogo proferida pelo protagonista de Videodrome (1983). Até que ponto é justificável um acto dito imoral poder ter o seu destaque no ecrã?
Imergir num filme do Cronenberg é como comprar um bilhete só de ida para o inferno da mente humana. Removida a camada superficial adornada de violência, o espectador descobre nos seus filmes questões fundamentais que rodeiam a essência humana. Distribui numa bandeja obras que levam o indivíduo a questionar-se a si mesmo, tentando afastar-se do conjunto para avaliar a sua posição integrante perante o mesmo. Faz ressurgir desejos reprimidos que aparentam não ter lugar numa sociedade civilizada. 

"The eye is the window of the soul"

Diariamente consumimos imagens, na grande maioria das vezes de forma inconsciente. Integram o nosso dia-a-dia e acabam por ser banalizadas. Gradualmente a noção de realidade esbate-se e é remetida para segundo plano. O advento do realismo transporta o ser humano para essa eterna ponderação.
No mundo diegético de Videodrome, é explorada uma clara distinção entre a realidade propriamente dita e a realidade ficcional, através daquilo que é apresentado através dos ecrãs. Mas acabam por se fundir, deixando personagem e espectador à deriva. Já não existe uma âncora que nos faça apenas oscilar sem nunca largarmos o cerne da realidade. 

"The television screen has become the retina of the mind's eye"

As personagens vivem rodeadas por televisões, as mesmas que aparentam comandar todos os seus movimentos. Tal noção pode ser observada de um modo mais concreto no estilo de vida do nosso protagonista. Um típico relógio com alarme accionado não é mais o modo de despertar, sendo esse lugar ocupado por uma gravação em VHS. O seu cérebro está desse modo programada para receber todo o qualquer estímulo visual que possa advir no decorrer do dia.
Ecrãs dispostos em montras (e aqui vem-me à memória o Brazil do Terry Gilliam que também explora um pouco a temática) e em última instância no meio das ruas. Anúncios publicitários e notícias lançadas ao vento. Cada indivíduo opta por dispensar maior ou menor atenção às imagens dispostas, ainda que se camuflem imediatamente na sua mente após apreendidas. 
A tecnologia sobrepõe-se ao próprio indivíduo, acabando por marcar a presença deste. A imagem é elevada ao estatuto de nova realidade e toma o lugar da carne viva. Os valores morais alteram-se. As conversas difundem-se em monólogos. O corpo procura novos limites, numa tentativa arrojada de se sentir vivo e tripulante de um tempo e espaço reais. A tortura do corpo como fonte de prazer. 
Imagens subliminares de teor erótico são infundidas no decorrer do filme. Deambulamos nos meandros de uma sociedade sexualizada e o realizador faz questão de explorar essa questão. São vários os elementos fálicos que espreitam por entre o enquadramento bem como a clara alusão dos orifícios corporais ao órgão sexual feminino. O espectador torna-se um voyeur. 
A imagem toma o controlo total e remete para a inexistência a realidade que o protagonista tinha como certa. De referir a dualidade presente na sequência final: a morte na imagem é tida em campo enquanto que a morte real é invadida pelos créditos finais. No primeiro caso a liberdade é total, visto tratar-se de uma realidade apresentada no ecrã. A "censura" toma conta do segundo momento, sendo que a realidade deve ser filtrada. 
David Cronenberg entrega uma obra-prima e o espectador participa no jogo. Consome as imagens plano a plano. 

"DEATH to Videodrome. Long live the new flesh"

Comentários

  1. Tenho o Cronemberg como um dos meus realizadores favoritos e este "Videodrome" como um dos seus filmes mais bem conseguidos. Esta fase do terror venéreo continua a ser a imagem de marca deste autor.

    De salientar também o trabalho do James Wood, actor cheio de personalidade que tem aqui uma das suas grandes personagens no cinema.

    e "death to videodrome. long live the new flesh" :D

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    1. Já me tinha apercebido que gostavas bastante do Videodrome através da lista que fizeste para o "Sala 3" eheh Até deixei lá um comentário, não sei se viste. O Videodrome é um colosso de filme.
      Ainda tenho muito para descobrir no cinema do Cronenberg mas agora é que lhe ando a dar mais valor, ao rever e ver alguns pela primeira vez. É fascinante!
      E sim, tens toda a razão quanto ao James Wood :P

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    2. Ainda não tinha visto :P

      O Cronember faz sempre parte dessas minhas listas eheh. Olha o Shivers também vale muito a pena, é dos mais antigos, mas a ideia é espectacular :D

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    3. Vou ver esse brevemente :D Por enquanto este é o meu preferido da sua filmografia, seguido do "The Fly". A ver se ainda escrevo algumas linhas sobre o eXistenZ, outro que me cativou pela sua temática, apesar de não ser tão bom quanto este.

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    4. A Mosca acho que foi o 1º que vi dele. Continua a ser especial, é um filme do caraças-

      O ExistenZ tb é bem interessante, aquele final é fantástico. E como é costume temos a tecnologia que supostamente é fria e metálica a ser retratada como quente e carnal.

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    5. Eu já não me recordo se o que vi primeiro foi o Crash ou o Scanners. Demorei muito tempo até me decidir a embrenhar no cinema do Cronenberg.

      Pois é tens toda a razão, esse é um dos temas recorrentes. Não me posso pronunciar quanto a toda a sua filmografia porque ainda me faltam bastantes mas ele tem um percurso bastante interessante e bastante fiel às temáticas a que se propõe.

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