A cinefilia como modo de vida
Carlos Natálio: Gostava agora de ler uma citação de Frank Capra que diz: “film is a disease. When it infects your bloodstream, it takes over as the number one hormone; it bosses the enzymes; directs the pineal gland; plays Iago to your psyche.” Alguns cinéfilos são acusados, alguns sentem-se mesmo culpados, de ver demasiados filmes. Alguma vez sentiste esta ansiedade por não estar, digamos assim, a “viver o suficiente”? E se sim, como lidas com isso?
Adrian Martin: Confesso que já senti essa ansiedade uma ou duas vezes na minha vida, não muitas na verdade. Identifico-me muito com essa citação. Ainda hoje eu vivo completamente obcecado com a possibilidade de ver mais e mais filmes. Quando era adolescente, claro, o cliché apareceu: “será que estou a passar demasiado tempo no escuro? Será que não estou a viver o suficiente?” Tudo isso. Mas rapidamente me reconciliei comigo e com esses pensamentos. Ver filmes, ligar-me a eles, pensar, escrever, ensinar cinema é uma forma de vida. Como outra qualquer, da mesma maneira do que o das pessoas que lêem obsessivamente, dão passeios ou o que quer que seja. Existe um tipo de personalidade na cinefilia. As pessoas, por vezes, isolam-se e fecham-se na sua devoção ao cinema. Por vezes, conheço pessoas assim e também não deixo de pensar que deveriam sair um pouco mais, apanhar sol, falar mais com as pessoas. Mas quanto a mim encontrei um equilíbrio sobre o qual me sinto bastante bem.
CN: Voltando à seriedade… (risos) As pessoas costumam dizer que o cinema clássico foi histórica e economicamente “usado” para formatar a identidade ocidental. O que te pergunto é, como é que o cinema pode ser o “oposto”, como é que pode ter um potencial para introduzir a diferença?
AM: Esta é uma questão enorme. Para mim é precisamente aí que reside a centralidade do papel da teoria cinematográfica. O cinema é uma arte industrial? Será que o cinema é uma forma convencional que ensina um frame de comportamento às pessoas e lhes diz como devem ser “bons cidadãos”? Ou é o oposto? Será que o cinema tem em si o potencial específico para transformar as pessoas, para criar uma experiência transformadora? Bom, eu penso que não podemos negar nenhum dos lados deste problema. Eu lembro-me que num momento inicial da minha carreira estava muito interessado nesta questão. Basicamente eu acredito que os filmes podem ser transformadores de uma forma positiva. Se assim não fosse porque é que nos interessaríamos por eles? Se nós os três não acreditássemos nisso não estaríamos aqui agora. Se pensássemos que o cinema nos transformasse em robots, não estaríamos aqui, seríamos apenas robots e não haveria problema nenhum… Há alguns anos eu escrevi um artigo que abordava precisamente o poder transformador do cinema e obtive da parte de um leitor uma resposta extremamente forte. Ele dizia que o cinema é o local onde pagamos dinheiro, comemos pipocas, vemos o filme, saímos e nesse “trajecto” somos parte de uma experiência social. Por outras palavras o espectador de cinema seria uma cobaia da sociedade, enquanto fazendo parte de uma máquina cinematográfica de produção e consumo. E claro não há nada de libertador para nós nisso. E ele perguntava: “onde está a revolução? Quando é que os cinéfilos se insurgem, se revoltam para mudar o mundo?” Claro que não o fazem. E nesse sentido ele tem uma certa razão, pagamos o dinheiro do bilhete e somos parte da máquina. Mas eu não penso que o cinema seja apenas isso, assim como seria naif dizer que é totalmente transformador. Se nos transformássemos assim tanto cada vez que víssemos um filme seríamos todos deuses e deusas.
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