The Perfect Human (1967), Jorgen Leth
O homem acende o cachimbo. Move o seu corpo de forma bastante coordenada e sem qualquer esforço. Evidencia-se de frente e de perfil perante o espectador como se o seu
físico fosse momentaneamente objecto de avaliação. A mulher move o seu cabelo
defronte uma superfície reflectora, que à partida não se encontra naquele
quarto desprovido de artificialismos.
Jorgen Leth empresta a sua própria
voz ao seu célebre ensaio fílmico de 1967 e começa por apontar: “Here is the human. Here is the human.” No instante em que tais
palavras se pronunciam, observamos o acto de apertar um cinto e abotoar uma camisa. Banalidades, imagens e actos do nosso dia-a-dia, mas que
certamente nos distinguem de qualquer outro ser vivo à face da Terra.
Apregoam-nos mais um sentido para o título de “humanos” que carregamos às
costas tão veementemente. A voz-off maquinal repete-se como que um eco que
exige a nossa atenção. Esta voz insinua-se com um timbre sereno, pausado, alheio de pressas, as
mesmas que se afirmam como inimigas da perfeição. A narração do realizador
acaba por se inserir em padrões como que imaculados.
“Here is the perfect
human. We will see the perfect human functioning. We will see the
perfect human functioning. How does such a number function? What kind of thing
is it? We will look into that. We will investigate that.”
E assim se estabelece a premissa
do trabalho de Jorgen Leth. Um humano perfeito. Com que objectividade se
atribui tal adjectivo? Que comportamentos e pensamentos se incorporam em tal
veículo utópico?
São apresentados ao espectador
modelos de perfeição, na forma de elementos masculino e feminino. O homem enverga uma
camisa branca e um fato preto, ambos extremamente bem cuidados. Emprega um laço
no pescoço e aperta os atacadores dos seus sapatos pretos optimamente
envernizados mediante um gesto peculiarmente cuidado. A mulher dá corpo a um vestido
imaculadamente branco e umas botas de cano alto aparentemente cinzentas.
Reveste os seus lábios com batom. Aplica blush numa tentativa de camuflar defeitos ou em plena consciência de que tal acto é considerado perfeito?
Os físicos deste casal perfeito satisfazem a maioria dos indivíduos da sociedade em que o realizador se insere. Corpos nas proporções mais aceitáveis nos meandros de uma sociedade superficialista. O cigarro, o charuto e o cachimbo remetem para um casal consumidor que se suporta num vício ou, como o inicio do filme pode insinuar, para modelos de pessoas que se apoiam em tais actos como uma tentativa de inserção ou como preenchimento de um estilo já demarcado. Um acto sofisticado que outrora foi visto como algo sedutor, tal como o batom que a mulher incorpora nos seus lábios. O casal realiza os seus rituais diários numa exibição perante uma audiência que se diz cansada de observar os mesmos. Jorgen Leth filma a sua curta-metragem a preto-e-branco, criando uma dualidade de sentidos para o próprio sentido que aparentemente pretende transmitir. O quarto pinta-se de branco. O mesmo quarto que parece não pertencer a um tempo e espaço concretos. Cor simbolicamente associada a pureza, calma, inocência, frieza, optimismo. Cor associada à perfeição. Cria-se um espaço libertador e sem fronteiras, onde os modelos humanos podem deambular sem uma opressão exterior. Por outro lado, afirma-se como um local onde a solidão se introduz. O realizador brinca também com a cor preta que adquire um carácter de sofisticação e luxo. Cria assim pólos opostos que tentamos identificar com o decorrer do filme.
Os físicos deste casal perfeito satisfazem a maioria dos indivíduos da sociedade em que o realizador se insere. Corpos nas proporções mais aceitáveis nos meandros de uma sociedade superficialista. O cigarro, o charuto e o cachimbo remetem para um casal consumidor que se suporta num vício ou, como o inicio do filme pode insinuar, para modelos de pessoas que se apoiam em tais actos como uma tentativa de inserção ou como preenchimento de um estilo já demarcado. Um acto sofisticado que outrora foi visto como algo sedutor, tal como o batom que a mulher incorpora nos seus lábios. O casal realiza os seus rituais diários numa exibição perante uma audiência que se diz cansada de observar os mesmos. Jorgen Leth filma a sua curta-metragem a preto-e-branco, criando uma dualidade de sentidos para o próprio sentido que aparentemente pretende transmitir. O quarto pinta-se de branco. O mesmo quarto que parece não pertencer a um tempo e espaço concretos. Cor simbolicamente associada a pureza, calma, inocência, frieza, optimismo. Cor associada à perfeição. Cria-se um espaço libertador e sem fronteiras, onde os modelos humanos podem deambular sem uma opressão exterior. Por outro lado, afirma-se como um local onde a solidão se introduz. O realizador brinca também com a cor preta que adquire um carácter de sofisticação e luxo. Cria assim pólos opostos que tentamos identificar com o decorrer do filme.
“Now we will see how
the perfect human looks and what he can do. This is how an ear looks. And
here is a pair of knees. And here a foot. Another ear. Here is an eye. Look at
this human’s eye. Then a mouth, a mouth and another mouth. Look.”
Jorgen Leth enquadra as partes do
corpo que quer destacar através de close-ups para chamar a atenção do
espectador a todo o instante. Os planos são sempre fixos. A dupla de actores
move-se como se de um cenário se tratasse, preenchendo o plano sempre que
necessário ou abandonando-o para criar a ideia de movimento no quarto.
“The perfect human moving in a room. The perfect human can
move in a room. The room is boundless and radiant with light. It is an empty
room. Here are no boundaries. Here is nothing. Walking, running,
jumping, falling. Look. Now he falls. How does he fall? This is how he falls.
Look. Now she lies down. How does she lies down? This is how she lies down.
Like this.”
Quando o homem salta não parece
possuir qualquer peso. As acções aparentam ser desempenhadas sem qualquer
esforço. Nesse instante vislumbra-se um pouco a sua inocência como se estivesse a passar por um processo de regressão. A mudança para uma vestimenta branca evidencia isso. Novamente, o branco ilustra a inocência e a pureza. Vislumbra-se uma
dualidade de sentidos com a mesma queda representada duas vezes, durante as quais o homem
enverga uma roupa diferente. E a queda efectua-se para a
direita e em seguida para a esquerda. Com a mulher acontece precisamente o mesmo.
Deita-se envergando uma roupa preta e em seguida desempenha o mesmo acto com um vestido
branco, numa posição simetricamente oposta à inicial. Jorgen Leth acaba por
parodiar o que se pensa ser um humano perfeito. Mostra ao espectador um homem em queda e uma mulher deitada e coloca-lhes o rótulo de perfeição, esperando que nos
confrontemos com tal ideia. Levanta questões e responde às mesmas mostrando
novamente as acções que levantaram tais questões em primeiro lugar. Ao invés de assumir uma postura cientifica, explicando o porquê da fisionomia do nosso corpo nos permitir
cair ou deitar, acaba por gozar com tais acções, limitando-as a serem avaliadas com um olhar cómico.
“Yes there he is. Who is he? What can he do? What does he want? Why
does he move like that? How does he move like that? Look at him. Look at him
now. And now. Look at him all the time. Now the music is gone. No music
anymore. The perfect human in a room with no boundaries
and with nothing. And a voice saying a few words. This voice saying a
few words. Look at him now. Look at him all the time. Now the perfect human
undresses. The clothes come off. Coat, shoes, trousers, boots, socks,
dress, nightgowns, bra, pants. The clothes come off.”
O homem envolve-se numa dança consigo mesmo e o
realizador acompanha-o, especulando o porquê de tal acto e no que estará a
pensar enquanto o desempenha. O quarto branco ajuda o homem a libertar a sua total
essência, sem julgamentos exteriores. É um local onde pode soltar a sua mente
e aclarar emoções. O casal despe-se. Os planos próximos continuam presentes. A
narrativa caminha assim para uma maior intimidade.
“How is it to touch
the perfect human? How is the skin? Is it smooth? Is it worm? Is it
soft? Is it dry? Is it well-cared for? How is the skin of the chin? How is it
on the legs? The arms? The throat.”
Uma questão se impõe: O casal
perfeito ouve a mesma voz que o espectador? Em determinados instantes, Jorgen Leth dá a
entender que sim, que realmente a ouvem e que inclusive reagem a esta. Homem e Mulher roçam na pele de ambos. Reconhecem à partida que são perfeitos? Alguma vez acariciaram a pele de um ser exterior? Desconhecemos a resposta a todas estas questões. O
próprio realizador não se preocupa em atribui-las, a sua premissa não passa por
aí.
“Here is the bed. Here
is the bed. Fresh fragrant sheets. A soft spring mattress. A bed in this room.
The room is no longer empty. There is a bed in the room. A bed in which the
perfect human sleeps and makes love.”
A voz maquinal relembra-nos vezes sem conta a mesma informação, mudando unicamente a ordem das palavras, mantendo o sentido inalterado. O espectador apreende uma visão mais íntima. Ambos se encontram deitados na cama e por meros instantes o
monólogo narrativo que nos direcciona desde o inicio interrompe-se e o
realizador comunica através de vários zoom-in e zoom-out.
“Listen to the human
getting ready. Listen to the perfect human living. Listen to its sounds. What
is this human thinking?”
Jorgen Leth satiriza uma
sociedade que procura perfeição nas mais fúteis definições. Observamos a mulher a cortar as unhas.
Questiona-se sobre o que pensa ela. Interessa-nos realmente o que pensa esta
mulher enquanto desempenha um acto rotineiro como cortar as unhas? Ou
preferimos ficar numa camada mais superficial? Que pensamento pode ser
considerado perfeito e adequado a um acto tão comum? Põe-se a hipótese de poder existir algum.
“Now there is a table
in the room. And chairs…and the human…the music…and the voice. The perfect
human is going to eat and drink. We will see a meal. How does the perfect human
eat? We will see it’s mouth…eating. We will hear the sound of knife and fork.
We will see the fish being carved. And the wine being poured into the glasses.
Dinner is served. Lovely broiled salmon with boiled potatoes and sauce
hollandaise.”
Agora com uma mise-en-scène mais construída, cada elemento do casal ocupa um lugar na ponta da mesa. Serve-se a refeição. Porções pequenas tal como instruem as mais célebres regras da etiqueta. Bebem
vinho, símbolo de requinte, e ingerem salmão que emana uma cor que se associa a
felicidade e harmonia. Tudo servido
com extrema delicadeza. Atentamos o abocanhar. Isto se proclama como a perfeição? O que o
distingue de nós? O que o distingue de qualquer ser humano que tenha posses
para um jantar semelhante?
“What is he thinking?
What is he thinking? Is the perfect human thinking of the room is in? The food
he eats? Happiness? Love? Death? What is the perfect human thinking? Look at
him. What is he thinking?”
Enquanto consome, o humano observa
tudo com estranheza em jeito inquisitivo perante todos os alimentos.
“Why is fortune so
capricious? Why is joy so quickly done? Why did you leave me? Why are
you gone?”
As linhas de diálogo precedentes correspondem ao homem perfeito, que as cantarola várias vezes por entre garfadas. Depreende-se pelo olhar ausente do homem de
que a mulher já não se encontra na mesa e provavelmente já não faz parte do
quarto. No espectador reside a sensação de que a mulher o abandonou. A
perfeição findou. Apenas um homem sozinho num quarto imaculadamente
branco. No plano final, o homem olha para a câmara e mexe ambas as mãos de forma peculiar em jeito de comunicação entre ambas. A sua
última fala recicla algo dito anteriormente:
“Today, too, I experienced something I hope
to understand in a few days.”
O filme de Jorgen Leth aspira uma essência perfeita. Apenas duas personagens num quarto branco. Um cenário
minimalista que auxilia uma perfeição que se busca na premissa da qual se
parte. Planos fixos e cuidadosamente montados. Narração pausada. Cada elemento extremamente bem cuidado.
O realizador critica uma sociedade que adopta valores e
concepções erradas para rotular simples humanos como modelos da perfeição. Cada vez mais
se busca um primor que não existe, que não se deixa atingir. O realizador
mostra-nos um casal e apregoa-o de ideal. Não o entendemos como tal, apenas
procuramos evidências do mesmo durante 13 minutos. Não fornecendo respostas, o seu ensaio afirma-se como uma sátira a uma perfeição que aqui se
rege por rotinas diárias. O seu filme resiste ao tempo e torna-se
exponencialmente actual.
Comentários
Enviar um comentário